As Moradas da Alma

Teresa não foi a primeira mulher que teve experiências místicas. Antes dela, Hildegard de Bingen, Mechtild de Magdeburgo, Catarina de Sena e mais algumas outras conheceram-nas igualmente por experiência própria e nos deixaram o relato das mesmas em seus escritos. No caso da grande Teresa, porém, a situação era muito diferente. Da sua parte, ela não sentia nenhuma necessidade para assentar por escrito as coisas experimentadas. Não tinha ambições de escritora, nem pensava em manifestar externamente o que se havia passado no seu interior.

Pelo contrário, foi o confessor que lhe ordenou escrever as suas experiências. Ela o fez a contragosto e julgava que deviam deixá-la tocar sua roda de fiar, visitar a capela e observar a regra, como o faziam as outras monjas, já que não tinha talento para escrever. Não obstante, ela obedeceu, mas em relação às suas predecessoras julgava dever dizer: "Essas sabiam o que escreviam, eu, porém, Deus o sabe, realmente não sei o que estou escrevendo!" Talvez tenha escrito em estado de transe; seja como for, ela possuía o raro dom de escrever. Por isso, muitas vezes é representada com a pena na mão e com uma pomba, símbolo do Espírito Santo. Sentava-se à escrivaninha e, muitas vezes, a pena deslizava tão rapidamente sobre o papel que ela mal podia segui-la. De quando em vez, ela se queixa de se ter afastado do assunto. Escrevia no parco tempo livre de que dispunha; escreveu em estado precário de saúde e geralmente só à noite, mas escrevia de fôlego. Acontecia muito raro ter de riscar uma palavra ou ter de acrescentar uma correção: seu espanhol é impecável.

As duas obras, Caminho da perfeição e Castelo interior ou moradas, não podem ser lidas como se lê uma poesia! Não são literatura no sentido comum do termo, porque não se destinam à distração nem à mera informação. A compreensão dos seus escritos está ligada à prática: tornam-se incompreensíveis a todo aquele que não os toma como instrução para a vida. Ildefonso Moriones reconheceu-o muito bem, quando disse que "ela mesma se transformou no livro vivo".

Como sempre, as exposições de Teresa contêm valiosos conselhos. Ela era uma mulher de rara prudência, que tivera uma rica experiência em sua vida e soubera assimilar espiritualmente as suas vivências. Por esta razão, foi capaz de orientar as pessoas e dar-lhes conselhos oportunos. Em certa ocasião, deu o seguinte conselho a uma pessoa propensa à depressão: "Trate de, às vezes, passear tranqüilamente ao ar livre, quando for acometida por esses sentimentos opressivos; por que eles dificultam a sua oração; é preciso que lutemos contra as nossas fraquezas de modo que a nossa natureza não fique prejudicada. Também esta é uma busca de Deus ... e é necessário que conduzamos nossa alma suavemente." Na orientação espiritual, Teresa não sugeria apenas passeios salutares, mas inculcava às suas monjas também a humildade. Humildade significava para ela estar na verdade. Indignava-se quando encontrava pessoas que não compreendiam a dignidade da própria alma. Era contra toda e qualquer violência que escraviza a alma e achava necessário certo grau de amor ao corpo, para que, da sua parte, fosse capaz de servir à alma. Uma alma não deve ser coagida nem podada sob medida, porque este modo de proceder só pode produzir uma existência truncada. "Porque, se falamos da alma, devemos combinar sempre com ela os conceitos de plenitude, amplitude e grandeza, nada disso é exagerado, porque a alma é capaz de abarcar muito mais do que nós somos capazes de imaginar". Este é um modo digno de falar da alma! Não se pode encontrar nela nada de rançoso, angustioso ou acanhado. Teresa sentiu toda a riqueza, amplitude e grandeza da alma; seu coração se alargara de verdade!

Teresa fez da mística o tema principal de suas obras, razão por que se tornou "um marco na história da mesma". A vida mística não foi para ela apenas teoria e, correspondentemente, também não escreveu tratados. Muito sabiamente ela dizia da mística: "Como se há de entender isto, não o sei; justamente este não-entender é que me causa grande alegria". Naturalmente, Teresa tinha conhecimento da teologia mística, visto que por vezes fez referências a ela; mas, examinando mais de perto a questão, para ela sempre se tratava da experiência. Defendeu uma mística expressamente vivencial e nunca lhe interessaram meras afirmações teológicas. Não se baseou em teorias, mas descreveu suas próprias experiências. Sem experiências particulares não existe vida espiritual genuína. Só a prudência não basta. Teresa não excluiu a reflexão; assinalou-lhe, porém, apenas o segundo lugar. Mística significava para ela, em primeira e última linha, experiência de Deus, que lhe coube em dom durante a oração. É nisto que consiste a credibilidade de seus escritos.

"É preciso que te busques em mim e a mim em ti" cantava Teresa; na autobiografia, o Senhor lhe disse: "Não procures encerrar-me em ti. Encerra-te em mim!" Nesta advertência significativa, documenta-se a conversão carmelitana. Quem está ocupado consigo mesmo, quem se fixa constantemente sobre a própria pessoa encontra-se numa rotina infindável. Não se deve procurar a Deus no minúsculo eu, mas inversamente, o homem deve encontrar-se em Deus; com isto supera o subjetivisrno em todos os seus matizes. A conversão do eu a Deus é uma ajuda maior do que pode oferecer qualquer psicologia. Se entra na presença de Deus e vive nela, a alma do homem torna-se diáfana e luminosa. Por isso, a mística de Teresa não se movia na onda de sentimentos alternados, mas consistia no cumprimento da vontade divina; tinha, por conseguinte, chão firme por sob os pés. "O mais alto grau da perfeição, evidentemente, não consiste em consolações interiores e em sublimes arrebatamentos místicos, nem em visões e no espírito da profecia, senão unicamente nessa conformidade de nossa vontade com a vontade divina". Como todos os místicos, Teresa usou certas parábolas para descrever o indescritível. A mística se acha vinculada a uma linguagem de figuras e não a conceitos. Seu conteúdo é uma "história de amor" com Deus. Teresa comparou a alma com um castelo com diferentes moradas. Costumava dizer que no nosso interior temos um mundo. Ela fala com extraordinária eloqüência sobre a inabitação de Deus em nós.

Admirável é o conhecimento inteiramente extraordinário que ela tem da alma. Em todas as épocas, os homens refletiram sobre a alma, a começar pelo obscuro filósofo Heráclito de Éfeso: "Vai e não acharás as fronteiras da alma, mesmo que andes por todas as estradas; tão profunda é a sua natureza", até a Realidade da alma de C. G. Jung, cujos conceitos se transformaram em lugares-comuns. Teresa conhecia tudo isto de maneira diferente; talvez se possa afirmar que ela o sabia até de maneira mais grandiosa e expressiva. Para Teresa, o importante era a alma; tomar consciência de sua alma foi uma de suas experiências mais profundas. Nos tempos hodiernos, o homem corre o risco de perder a sua alma e, justamente por esta razão, Teresa adquire uma grande atualidade. Ela fez a experiência do maravilhamento da alma. E isto causou-lhe uma profunda admiração. Lendo seus escritos, chegamos a conhecer algo do mistério da alma, e doravante não é mais possível ignorá-la. No pensar de Teresa, a alma compreende muito mais do que comumente imaginamos. Porém, "o progresso da alma não está no muito refletir, mas no muito amar". De acordo com esta compreensão profunda, o mais importante para a vida mística não é a reflexão, mas o amor. Para Teresa é importante o amor a Deus; para ela, a mística não consiste em especulações filosóficas. Quanto mais uma pessoa ama, tanto mais abrangente se torna sua alma. Teresa se opunha decididamente a uma uniformização da alma. "Como no céu há muitas moradas, assim também há muitos caminhos que levam a ele". Com isto fica banida toda uniformização e todo metodismo em seus inícios. Intencionalmente ela se expressa, muitas vezes, de maneira contraditória: "O que no início nos deve ocupar de modo particular é, unicamente, o grande cuidado por nossa alma, compenetrando-nos de que fora de Deus e de nossa alma não existe mais ninguém neste mundo". Isto não deve ser entendido no sentido de um egocentrismo. Teresa estava completamente isenta disso. Jamais uma pessoa será capaz de agir corretamente enquanto a sua alma não estiver em ordem. Em primeiro lugar, vem a alma e, só depois, a atividade externa. Quanto Teresa distava da mera preocupação consigo, pode-se deduzir das salutares palavras que se seguem: "Desde que tomo menos consideração para comigo e menos me preocupo comigo, tenho mais saúde que antes". Com este conhecimento, Teresa tem contra si todas as revistas femininas hodiernas - a verdade, não obstante, está do lado dela. A alma não cresce da mesma forma que o corpo; e nenhuma alma é tão forte que não sinta muitas vezes a necessidade de sentir-se novamente como criança. Teresa dizia: "É realmente uma coisa grandiosa uma alma que é capaz de entender a outra". Mas é raro que alguém consiga um conhecimento mais profundo da alma. A grande mística estava profundamente compenetrada do valor e da beleza infinitas da alma humana. Ela sabia que a mística significa andar em santa escuridão, renunciar ao mundo para se realizar de maneira inesgotável. O Castelo interior é o manual da mística; não fica devendo nada aos melhores escritos da mística alemã, francesa ou italiana ...

Em Teresa, a existência humana não se divide numa parte sacral e noutra profana. Esta divisão conduz necessariamente a uma cisão funesta. Um ponto alto da mística de Teresa consistia na sua capacidade de "ver Deus em todas as coisas". Voltava a falar desse ponto, dizendo que Deus lhe ajudava a encontrar "nos campos, na água e na flor um vestígio do Criador". "Um dia me foi dado ver como o Senhor está presente em todas as coisas e principalmente na alma." Deus está presente na eucaristia, na alma, mas também nas criaturas; eis uma descoberta grandiosa que empresta universalidade à piedade de Teresa. Com sua visão, recuperou todas as criaturas para Deus, atingindo com isso novamente o ápice da epístola aos Colossenses: "Tudo foi feito por Ele e para Ele".

A psicanálise, naturalmente, não deixou de perguntar se em Teresa não deparamos com um erotismo recalcado. Porventura não se referem nela anseios femininos a Jesus em vez de se dirigirem a um homem? Esta pergunta não é tão nova como tem a aparência de ser. Já em vida dizia-lhe uma monja ter lido que alegrias de caráter religioso-espiritual poderiam eventualmente provocar experiências de prazer sexual. Teresa respondeu-lhe que "sobre este ponto ela realmente nada sabia; que nela isto nunca havia acontecido e que ela nunca fora acometida por tentações sexuais". Ana de Jesus testemunhou no Processo de informação ter ouvido isto pessoalmente dos lábios de Teresa. Teresa não tinha necessidade de compensações, porque fora uma pessoa demasiadamente natural. Não se pode negar que a psicologia do profundo descobriu um aspecto, embora o tenha exagerado. O problema psicanalítico fossilizou-se num sistema rígido, que hoje se apoderou dos homens como uma obsessão. Mas, ao lado dele, existem também outros aspectos que no momento presente não são levados em consideração ou só muito pouco. É preciso que os conhecimentos da alma sejam colocados novamente no seu devido contexto, para se poder compreender até que ponto é fora de propósito falar de recalques em Teresa.

Outro golpe, porém, atingiu-a mais fortemente: em meados do século XVI deu-se na Península Ibérica um conflito entre a teologia escolástica e a mística, levando a um "cisma espiritual". Desde aquela cisão, encontramos na literatura espanhola intuições mais profundas do que nos tratados teológicos, só acessíveis aos especialistas. Teresa menciona que "de um momento a outro foram proibidos muitos livros místicos, entre eles, livros de são João d'Ávila, Luiz de Granada e Francisco de Borja". O episódio é um exemplo dos efeitos dessecantes e desastrosos a que a teologia pode chegar. Com a proibição da literatura mística, Teresa sentiu-se particularmente oprimida; o Senhor, porém, falou-lhe: "Não te entristeças; dar-te-ei um livro cheio de vida!" Esse "livro vivo" é ela mesma-, ela o transmitiu a todos aqueles que amam a. sabedoria secreta.

Também os escritos de Teresa foram entregues à Inquisição, em conseqüência da denúncia da princesa Eboli, sendo submetidos durante longos anos ao crivo. O procedimento contra Teresa não é inteiramente incompreensível, mormente porque, segundo Reinhold Schneider, a Santa fez "afirmações sobre o primado da graça, contra as quais nem Lutero teria nada a objetar". Além disso, é preciso considerar que certos santos foram citados às barras da Inquisição. Não obstante, não se pode levantar a mais leve dúvida a respeito da catolicidade de Teresa, convicção essa que deveria ter sido reconhecida desde o primeiro olhar. É provável que o Inquisidor tenha irradiado a crueldade e frieza que El Greco viu e reproduziu em suas telas. O Grão-Inquisidor em pessoa leu os escritos de Teresa, o que, segundo o relato dela mesma, nunca havia acontecido. Ele, porém, não ousou emitir um juizo. Pediu, pois, ao Pe. Bañez que desse um parecer. Este foi positivo; porém, simultaneamente o padre ordenou que o Livro da Vida de Teresa fosse publicado somente depois de sua morte. É a razão porque esta questão molesta foi protelada durante catorze anos; durante todo esse tempo, Teresa viveu sob a suspeita da Inquisição, gravame esse que ela teve de suportar com paciência. Rindo, confessou nunca ter temido a Inquisição, nem naquele tempo, quando pairou sobre ela a ameaça de prisão. Mesmo nessa hora mais difícil, ela deu mostras de sua superioridade. Por fim, os doutos, teólogos da comissão examinadora reconheceram que não fora possível descobrir um cabelinho sequer na sopa. Apesar disso nem todos os livros de Teresa foram liberados, porque eram escritos num estilo demasiadamente "coloquial". Certas cartas da Santa foram retidas durante séculos. Desta maneira é que, durante o século do ouro da Espanha, foi tratada a mulher mais religiosa, cujo único desejo era ser filha da Igreja católica!

Se quisermos obter uma idéia sobre a mística de Teresa é preciso que lancemos um olhar não para os teólogos, mas para a arte de El Greco. Teresa não exerceu nenhum influxo sobre este artista, mas a arte dele oferece um admirável paralelismo com a mística de Teresa. As figuras mais assombrosas de El Greco nasceram em Toledo, apenas algumas quadras distantes da casa onde Teresa residira naquele tempo durante meio ano. El Greco e Teresa nunca se encontraram pessoalmente; não possuímos nenhuma referência a um colóquio entre os dois. Não obstante, as pinturas flamejantes, metafísicas de El Greco exprimem, em misteriosas cores, o que Teresa revestiu em palavras. Numa e noutro o ser humano se dilui num gesto que tende para o céu, transformado que foi numa chama viva, anunciando uma realidade supra-racional. As pinturas de El Greco não podem ser comparadas com as pinturas dos grandes artistas espanhóis; somos tentados a dizer que não procedem do ateliê de um pintor. Elas procedem de um país mais distante, desconhecido, e são, como as palavras de Teresa, visões deslumbrantes de uma alma extática. Por isso atuam sobre o contemplador como um apelo supramundano, pedindo uma resposta. Durante séculos os historiadores da arte menosprezaram as pinturas de El Greco, eram pinturas bastardas, demonstrando assim, a mesma incompreensão da teologia da Inquisição em relação a Teresa. As figuras extáticas e distendidas de El Greco transcendem intencionalmente a realidade comum, ostentando febricitantes, seus êxtases, não muito diferentes dos de Teresa de Jesus. Artista e monja falam a mesma linguagem da mística, uma linguagem que o pensamento pragmatista não é capaz de entender, porque nada sabe da eternidade. Não foi por acaso que ambos foram declarados "loucos" pelo homem mediano. Teresa e El Greco viveram uma realidade mística voltada para o céu e interpretavam a partir dali os acontecimentos terrestres.

(Extraído da obra "Teresa de Ávila – Teresa de Jesus", de Walter Nigg, Ed. Loyola, pp. 48- 53)
Comments