Introdução aos Escritos de Santa Teresa de Jesus

Graça Pierotti
É na Introdução às Obras Completas de Santa Teresa de Jesus em edição francesa - (Oeuvres Complétes - Sainte Thèrése de Jesus - Docteur de I'Église - Aux Editions du Senil - Paris 1948) que encontramos um bom resumo introdutório para nossa apresentação - resumidíssima - em traços gerais, das obras de Santa Teresa, salientando suas duas obras magistrais: O Caminho da Perfeição e O Castelo Interior ou Moradas.
Ao canonizá-la "O Papa Gregório XV recomendou aos católicos a doutrina contida nos escritos da Santa. Estes se divulgaram rapidamente por todo o Ocidente: o sucesso foi tão surpreendente que, aos pés da estátua erigida em São Pedro de Roma, a Igreja colocou um dos mais belos títulos de glória da Santa: "Mater Spiritualium".
Suas obras são efetivamente fonte de vida. No entanto, Teresa não tem profissão de escritora. É sempre por ordem de Nosso Senhor ou de seus superiores eclesiásticos que ela se põe a escrever gemendo por se ver obrigada ela, simples mulher, a escrever em vez de a deixarem às suas ocupações ordinárias da vida religiosa.( ... )
Luis de Léon numa carta a Ana de Jesus, escrevia: "Pela profundidade dos assuntos tratados, pela delicadeza e clareza do modo com que os explica, ela ultrapassa muitos autores geniais: se considerarmos a forma da linguagem, a pureza e a fluência do seu estilo, a graça e a harmonia dos termos, a elegância despretensiosa que tanto encanta, duvido que exista em nossa língua uma obra escrita que se equipare à sua... "
Um de nossos contemporâneos, Hernendez y Pelayo, afirmava:
"Nem Malebranche, nem Leibnitz jamais encontraram ontologia tão poderosa. "
O Livro da Vida
Teresa escreveu para cumprir ordens de seus confessores. Diz Frei Gabriel de S. Maria Madalena O.C.D. que os escritos da Santa nos dão impressão de desordem. Isto porque como ela nunca fez rascunho, não relê o que escreve - pois escreve sem tempo, queixando-se mesmo de que está perdendo tempo - faz longas digressões que nos dão a impressão de uma mudança, não só do assunto que abordava, mas até do gênero que escrevia. Exemplo disso temos neste livro da vida: no capítulo onze, a Santa, interrompendo o relato dos episódios de sua vida, começa a explicar, com riqueza de detalhes, em que consistem os quatro graus de oração. Só termina no capítulo vinte e dois (104 páginas). Depois retoma a narração da vida no ponto onde deixara, dizendo: "Creio que me desviei mais do que o necessário". Outras vezes exclama: 'Como me afastei do meu assunto!", e retoma o que dizia às vezes vinte páginas atrás. Embora resumida, já demos atrás alguma idéia do que é o Livro da Vida.
O Caminho de Perfeição
O ideal da Reforma Tereslana era atrair almas generosas que quisessem seguir o caminho da perfeição que leva a Deus, ou melhor, que leva à maior união possível com Deus. A vida religiosa, consagrada pelos votos, é uma opção de seguir o Senhor, cumprir sua vontade, não somente nos mandamentos, mas, com maior perfeição, nos conselhos evangélicos.
No Caminho de Perfeição, a Mestra vai traçando um itinerário espiritual que, começando com aquela decisão de dar-se inteiramente e sem reservas, vai galgando as etapas da ascensão, para a conquista do Reino de Deus. Com palavras claras e práticas vai ensinando que, de saída, devem dar-se à oração, seguindo o conselho de São Paulo: "Orai sem cessar". Explica o valor imprescindível do silêncio para conseguir o recolhimento interior; em que consiste o amor ao próximo que no convento é "o amor de umas pelas outras"; o que é o desapego. Frisa a importância do conhecimento próprio e de como o sofrimento nos ajuda nesse sentido.
Para ela esse conhecimento lúcido de si próprio é o pão que nos deve acompanhar no caminho da oração; a começar pelo conhecimento de nossas fraquezas e limitações, enquanto criaturas marcadas pelo pecado original, até o conhecimento de nossas fraquezas pessoais. Sempre com a noção das deficiências femininas - bem próprias da época - diz ela com graça: "Há coisas tão fracas como nós, mulheres, tudo nos pode fazer mal' e ainda: "Basta-me ser mulher para me caírem as asas."
Com muita lucidez adverte que humildade é estar na verdade, ou seja, é ver as coisas como elas são e não sob o nosso próprio prisma, ou como quereríamos nós que fossem. Podemos até concluir que, quanto mais for objetiva uma pessoa, mais dócil à realidade das coisas, mais humilde será. E, avisa, 'andai alegres, servindo naquilo que vos mandam, se for verdadeira essa humildade, bem-aventurada tal servo de vida ativa".
Conceitos sobre o Amor de Deus
Esse livro tem uma trágica história. Um de seus confessores, Pe. Yangas, a quem ela mostrava o livro, menosprezando-o ordena-lhe que o lance ao fogo, o que ela faz imediatamente. Mas algumas de suas filhas já tinham copiado algumas páginas, foi o que se salvou.
São pensamentos que levam a uma maior união, a união mais íntima possível de alma com a vontade de Deus de modo com que não traga mais divisão entre os dois.
O Livro das Fundações
Além de narrar as fundações Teresa fez neste livro muitas digressões sobre diversos assuntos: no capítulo IV fala sobre as graças que Deus lhe concede; no capítulo V dá avisos sobre a oração e as revelações; advertências sobre algumas ilusões de fervores espirituais e diretivas às Irmãs que dirigem os mosteiros; no capítulo VII, como lidar com as "melancólicas" que, na linguagem de hoje, seriam as neuróticas. Aqui a Madre nos mostra seu fino senso psicológico e aconselha as Superioras a não deixar que as 'melancólicas" fiquem em longas orações mas, ao contrário, que as façam trabalhar, ou seja, hoje em dia, a terapia ocupacional.
O Castelo Interior ou O Livro das Moradas
Essa é a obra prima de Teresa de Jesus. Ela está com sessenta e dois anos e atinge a plena maturidade com experiência de vida ampla e profunda, pelas obras realizadas nas fundações que já fizera, nos cinco livros que já escrevera, nos contatos com todo tipo de pessoas, desde autoridades eclesiásticas, governamentais - o próprio rei - nobres damas e cavaleiros, santos famosos, até operários, carroceiros e suas já numeraras filhas.
O Castelo Interior é como o complemento, ou melhor, o aprofundamento do que escrevera no Caminho da Perfeição. É uma educação espiritual de Madre Teresa que quer levar as almas aos píncaros da Santidade, que não é outra coisa senão a união de amor a mais íntima possível da alma com Deus. Ela escreve o livro no Mosteiro de Toledo por obediência ao Padre Gracian da Madre de Deus, seu superior como Visitador Apostólico.
Não sabia como começar o livro e "suplicou a Nosso Senhor que falasse por ela". Aí, imaginou um castelo de cristal, não um castelo fechado, mas como uma construção irregular de moradas ou aposentos, dizem uns que semelhante ao alcazar de Toledo. Explicou que no interior desse castelo há sete moradas. Esse castelo é a alma com profundezas a serem exploradas, diz ela, avisando às suas filhas que "há dentro de vós uma coisa mais piedosa do que aquilo que vemos no exterior. Entra-se nesse castelo da alma pela oração, nos seus graus cada vez mais despojados e puros que nos fazem experimentar a vida de Deus em nós".
NAS TRÊS PRIMEIRAS MORADAS as almas ainda estão impregnadas do espírito do mundo. "Os sentidos e as potências, que são vassalos da alma, não têm mais a força natural com a qual Deus os tinha dotado." Mas a alma aplica-se em aprofundar, com esforço vigoroso e constante, por meio de suas faculdades, as grandes verdades da fé, fundamento de sua nova vida. Aplica-se ao recolhimento, à correção de seus defeitos, à organização de sua vida espiritual com orações e leituras.
NAS QUARTAS MORADAS dá-se um nascimento e progresso de uma nova vida que invade a alma. Maior vigor na ascese para destruir os vícios. Maior facilidade de recolhimento. Docilidade à ação da graça de Deus que se faz na vontade, que se faz cativa da vontade de Deus. É pela virtude "da humildade e ainda e sempre humildade" que o Senhor se deixa vencer e nos concede o que pedimos.
NAS QUINTAS MORADAS a união se torna total e a alma começa a sentir uma transformação em si mesma. Ainda maior facilidade de recolhimento e oração. Aqui a Santa faz uma bonita e boa comparação entre as evoluções da borboleta e as da alma, ou o itinerário da alma que, de verme (pecados e limitações), cresce, põe-se a fiar para construir sua morada onde vai morrer, para depois sair, libertada e bela, para a vida divina. Nessas moradas a alma "tem sede de penitência, suspira pela solidão, quereria que Deus fosse conhecido de todos os homens, daí vem uma aflição profunda por vê-lo tão ofendido".
NAS SEXTAS MORADAS os sentidos e as faculdades estão suspensos "podemos dizer que estão mortos", no entanto, 'a alma jamais esteve tão desperta para as coisas de Deus, jamais teve tanta luz e conhecimento de sua Majestade". A inteligência da alma permanece nutrida a ponto de só achar interesse e gosto nas coisas de Deus, nas verdades que lhe são reveladas cada vez com maior claridade. As vir- tudes do abandono, da paciência, do espírito de pobreza, esperança e infância espiritual estão cada vez mais robustecidas.
NAS SÉTIMAS MORADAS dá-se o ponto culminante da vida mística: o matrimônio espiritual. É um "êxtase doloroso", uma "angústia intensa de amor" que a alma sente para depois ser introduzida no aposento do Rei, no âmago do castelo. Aí "Deus faz cair as escamas dos olhos da alma a fim de que ela contemple e compreenda..." '0 espírito dessa alma', diz a Mestra, 'torna-se a mesma coisa com Deus", é uma união, uma comunhão de vontades que se realiza em atos de caridade perfeita para com o próximo, de desvelo para a salvação das almas, de amor e serviço para a Igreja esposa de Cristo. Pensando em todas essas riquezas, nessas inauditas aventuras da graça de Deus na alma, a Santa exclama:
"Ó minhas irmãs! Como tudo que deixamos é um nada! Nada é também tudo o que fizemos e o que podemos fazer por um Deus que quer se comunicar assim, a uns vermezinhos como nós! Desde que temos a esperança de gozar já nesta vida de semelhante felicidade o que fazemos nós? Em que nos detemos?... É verdade que são dons que Deus concede a quem Ele quer; mas se amássemos o Senhor como ele nos amou, no-los concederia a todos. Ele nada deseja tanto quanto achar a quem dar. "
Obs.: Este texto foi extraído do livro "As Duas Teresas – Teresa de Lisieux, Teresa de Ávila", de Graça Pierotti, Edições Louva-a-Deus, Rio de Janeiro, 1998, pp. 77-81, cuja leitura recomendamos.