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Testemunha da Luz

“Ninguém acende uma lâmpada

Para  colocá-la  em lugar escondido

Ou debaixo do alqueire,

E sim sobre o candelabro,

A fim de que os que entram vejam a luz.

A lâmpada do corpo é o teu olho.

Se teu olho estiver são,

Todo o teu corpo ficará também iluminado;

Mas, se ele for mau, teu corpo também ficará no escuro” (Lc 11,33-34)


É certamente, a propósito, que a liturgia, para a festa de São João da Cruz, inseriu na missa esta página do evangelho de São Lucas, na qual o evangelista traz as palavras de Nosso Senhor, que glorifica a luz e a simplicidade do olhar. Ele nos fala do nosso corpo que pode ser luminoso ou cheio de trevas: “Todo o teu corpo ficará também iluminado”, nosso corpo será iluminado se nosso olhar é simples, ou então, ele ficará repleto de trevas.

Esta página do Evangelho oferece à festa de São João da Cruz, eu diria sua verdadeira característica, tornando-a uma festa de luz.

Nós sabemos, com efeito, que desde sua morte alguns fragmentos do seu corpo aparecem completamente iluminados. Francisco, seu irmão, que conservava um, olha de improviso esta relíquia e surpreende-se ao vê-la brilhar de luz, de ver brilhar o corpo do santo. Este fenômeno se reproduzirá ainda muito freqüentemente. O olhar de São João da Cruz foi muito simples, e é por isto que seu corpo é iluminado. É a lição que ele nos dá.

Por que seu corpo é iluminado? Seria por que ele foi dotado de uma inteligência considerável, genial, por perscrutar as vezes as profundezas do céu e as profundezas da alma? Que sua inteligência, admiravelmente sintética, soube reunir os frutos de suas descobertas interiores, psicológicas e espirituais, com aquelas da teologia que ele havia aprendido em Salamanca? E que o tornou assim verdadeiramente o Doutor da teologia ascética e mística? Não, não é por isso que sua alma foi luminosa, que sua festa é uma festa de luz...Seu corpo é luminoso, sua alma é carregada de luz por que João da Cruz teve um olhar simples.

O que quer dizer, “um olhar simples”? Seria a simplicidade de seus olhos? Não, trata-se da simplicidade do olhar por excelência, aquele da alma, quer dizer aquele da fé. Ele realizou esta simplicidade do olhar que é a contemplação: “Simplex intuitus veritatis” (S.Tomás), olhar simples sobre a “verdade”. “Simples” quer dizer que este olhar de fé é desembaraçado, desprendido de todas as impurezas, não somente aquelas do pecado, mas do que é impureza, obstáculo: todos os apoios sensíveis, mesmo os apoios da experiência espiritual que este olhar pode encontrar, e os apoios intelectuais que pode lhe fornecer a razão. Olhar simples de são João da Cruz, olhar desta antena, que se enxertava em sua inteligência, que não tendia, que não estava orientada senão para Deus só e não queria senão o ser de Deus, a essência de Deus. E seu olhar se mergulhava nesta essência de Deus, embora ela esteja cercada de obscuridade, ou melhor por que ele era cercada de obscuridade, e que sua fé encontrava nesta obscuridade novas purificações.

Esta foi a sua vida: tudo ultrapassar, todos os apoios, todos os bens, sensíveis, intelectuais, mesmo espirituais, todas as visões, todas as experiências mais altas que ele havia feito e que ele continuava a fazer, para não ver, não desejar, não aspirar, para não se mergulhar senão em Deus somente, no ser de Deus obscuro, o objeto de sua fé.

Esta aspiração foi coroada de sucesso; ele alcança esta essência de Deus, aí ele mergulha. Ele atingiu dela profundezas que nós não podemos medir; e ele aí ele extraiu a luz que o iluminou, ai ele encontrou o amor que o transformou...”Se teu olhar torna-se simples, todo teu corpo, todo o teu ser, será luminoso”. Eis o que é São João da Cruz: um ser de luz, porque ele viveu de fé, por que ele desposou a Deus, a Sabedoria, na fé, e porque esta Sabedoria se comunicou a ele.

Sim, esta Sabedoria de Deus, esta luz não é a sua. Dele, se pode dizer o que o evangelista João dizia de João Batista: “ele não era a luz, mas ele vinha trazer o testemunho da luz”. A luz de João da Cruz é um testemunho da luz do Verbo, da luz da Sabedoria de Deus. É esta luz que ele descobriu, este sol que paira sobre as almas, este sol que está a porta por assim dizer, que é na atmosfera e espera simplesmente que nós abramos a janela de nosso apartamento, a janela de nossa alma – a saber nosso olhar de fé – para aí penetrar abundantemente. É desta luz que ele leva o testemunho, é ela que ele nos remete, esta luz que ele atesta a existência e o poder, que ele atesta, em sua alma e em sua vida, todos os efeitos.

É pois o testemunho da existência, do poder, do movimento que está na luz de Deus, testemunho também do que pode obter e realizar a simplicidade do olhar, a simplicidade da fé. “Se teu olhar é simples, todo teu corpo, todo teu ser será luminoso”.

Eis a lição que nos traz esta festa, aquela que nós devemos conservar: com efeito, esta simplicidade do olhar purifica tudo. Por ela pode chegar uma luz que purifica tudo, muda tudo, transforma tudo. São João da Cruz no-lo diz, ele nos mostra. Nesta festa, nós devemos não somente recolher esta lição especulativa e sua realização magnífica em São João de Cruz, mas igualmente recolher seu exemplo para caminhar nós também sobre suas pegadas.

O que é que importa? Que nós purifiquemos nosso olhar, que nossa fé se erga como a fé de São João da Cruz, através de tudo, para alcançar Deus. Nós viemos de Deus, nós retornamos para Deus, nossa vida aqui nos é dada para nos purificar, para nos desembaraçar progressivamente de tudo, para purificar o olhar de nossas afeições, de nossos apegos. Que este olhar, esta aspiração da alma, não tenha mais que a Deus, e que Deus verdadeiramente seja nosso alvo, nosso fim; que em Deus nós não busquemos sua consolação, sua beleza, nem mesmo sua luz por ela mesma, mas que nós o busquemos, ele, o seu ser, o infinito de Deus. Por é nele somente que nós encontramos nosso fim, nossa alegria, nossa plenitude, nele somente, que aqui, nós podemos encontrar nossa luz...

Peçamos a São João da Cruz de nos arrastar atrás de si, de nos ensinar a purificar nosso olhar. Isto pode se fazer muito simplesmente. Nós nos detemos muito freqüentemente diante de falsos obstáculos, obstáculos que são ao invés meios: nós nos detemos diante da nossa fraqueza, da nossa pobreza, nós nos detemos diante de nossa miséria, de nossa falta de inteligência, de nossa falta de santidade, ao menos da santidade tal como nós a concebemos. Ora tudo isto é meio para purificar nossa fé.

Sim, a miséria que nos envolve, as chagas que nós carregamos, a fraqueza que nós somos carregamos, a ausência de virtude, a falta de inteligência penetrante, eu digo que tudo isto é meio. A fé deve se elevar, de qualquer modo, sobre toda esta pobreza; ou melhor, se esta pobreza não existisse, seria preciso criá-la para poder se erguer para cima e penetrar em Deus. É preciso que esta fé seja pobre, e pobre de tudo: pobre sobretudo de tudo o que nós nos queixamos de não Ter. Se nós nos lamentamos disso, é por que nós lhe somos apegados, é porque nossa pobreza não é verdadeira, porque ela não nem material nem espiritual.

É sobre tudo isto que a fé deve se elevar para alcançar a Deus: sobre uma pobreza completa, absoluta, sobre um desapego completo, sobre ruínas de qualquer sorte. É lá que ela brilha, sim, sobre as ruínas, na obscuridade do Calvário, o desastre do Calvário. É lá que se ergue o castiçal, como o diz Santo Agostinho: “Candelabrum lignum Crucis”, o castiçal é a Cruz; é sobre o candeeiro que brilha a luz do Verbo, aquele que deve nos atingir, aquela para qual nós devemos nos iluminar e que nosso olhar deve fixar. Pois é lá, neste Verbo encarnado, preso no castiçal da Cruz, que nós encontraremos a luz.

Peçamos a graça desta simplicidade da fé, desta simplicidade do olhar que não tem necessidade de riquezas, que há medo da riqueza, material, sensível, intelectual e mesmo espiritual, pois ela arrisca de se alimentar dela, de se sujar com ela, de perder aí seu elã, sua força, sua penetração e sua eficácia. Quando o olhar da alma fixou assim na luz do Verbo encarnado, sua luz abaixa: “O corpo inteiro será luminoso”. Sim, é bem verdade que nosso corpo, como o corpo de São João da Cruz, torna-se luminoso.

Que importam as fraquezas: esta luz utiliza nossas fraquezas para brilhar mais, para dar reflexos particulares. Não é pois através da nuvem carregada de umidade que os raios do sol passam para produzir o arco-íris? Não é verdade também que estes raios do sol brilham mais claros e mais doces na desolação das ruínas do que sobre a rigidez polida de um palácio de fabricação humana?

E quando nós olhamos o Calvário e aí vemos esta luz do Verbo que brilha assim e se irradia nas trevas, quais são os espelhos que no-la remetem de modo mais puro e mais útil para nós? Certamente, é a Virgem Maria, espelho sem mancha, Virgem pura, Mãe imaculada, que nos remete estes raios da luz do Verbo, e ele no-los remete carregados de sua fecundidade. Mas ao lado dela, o que há? Há Maria Madalena, há o bom ladrão.

Maria Madalena é, ela também, um espelho, um espelho que aparece manchado pela sua pobre miséria sensível e sensual; entretanto os raios que nós recebemos por estes espelhos são tão bons e tão doces para a alma...Há o bom ladrão: carregado dos seus crimes, ele recebe também a luz misericordiosa do Verbo que está sobre a Cruz; e esta luz que o espelho de sua alma nos remete, que nos chega por suas palavras, pelo testemunho de sua confiança, pelo espelho de sua alma carregada de crimes, não é dos mais consoladores para nossa miséria e nossa pobreza?

Sim, a luz de Deus utiliza tudo. Esta luz de Deus passando pela inteligência de João da Cruz, vai purificar mesmo os cantos, os cantos nos quais a licença sensual de Granada aumenta a noite; estes cantos sensuais, licenciosos, a luz de um João da Cruz os purifica, e eles não nos falam mais agora senão do amor de Deus, do amor do ser de Deus. Eles estão purificados: “Tudo será luminoso”, sim, tudo está purificado.

Nestes fatos, qual lição preciosa para nós! Nossa miséria não é um obstáculo, nossa miséria é um meio: a pobreza é necessária. Utilizemos aquela que nós temos em nós, aquela que nós carregamos: as chagas que nós carregamos, nos dirá João da Cruz (Cf. por exemplo Viva Chama, estrofe 2), nossas misérias tornam-se fontes de luz quando elas são colocadas sob a luz de Deus. Testemunham o bom ladrão, Madalena, os cantos de Toledo.

Aproximemo-nos com confiança, amemo-la, esta miséria. Como o Apóstolo, se é preciso que nos gloriemos de algo, é destas misérias que nós vamos nos gloriar: “Eu me gloriarei das minhas fraquezas”(2Cor 12,9). Por que? Porque elas nos dão o direito, de qualquer modo, ou ao menos elas apelam à misericórdia de Deus; e por que, banhadas na luz de Deus, ele podem se encher dela, melhor que isto, elas podem me ajudar a testemunhar do meu modo, para as almas, a luz de Deus.

Lembremo-nos do quadro do Calvário, o testemunho da Santíssima Virgem, incomparável é verdade, por que é aquele da pureza imaculada; mas na falta da pureza perfeita, aproximemo-nos de Maria Madalena, aproximemo-nos do bom ladrão. Que o testemunho da luz de Deus, passando por nossa miséria, por nossa pobreza, por nossos crimes talvez, por nossas chagas, por nossa fraqueza, leve ao mundo um testemunho do poder da luz de Deus, da sua misericórdia, de seu amor. Que este testemunho seja nossa forma de apostolado, que ele atraia àqueles cumes da vida espiritual, ou melhor que ele atraia para a realização da simplicidade do olhar, sob o fogo do amor e da luz de Deus, todas as almas, todos os pobres, todos os fracos, todos os miseráveis como nós.

Digamos a São João da Cruz de nos ajudar a realizar esta simplicidade do olhar, de no-la dar, de criar em nossa alma uma aspiração, de nos mostrar como nós devemos fazer para realizá-lo. Que ele nos faça tomar consciência deste tesouro que nós levamos, deste olhar, desta antena que o batismo fixou em nossa alma, e que nos permite de tomar um contato real, eficaz, ainda mais íntimo, penetrante e profundo com a luz de Deus, a luz do Verbo. Que assim nós fiquemos repletos dela, afim de que todo o nosso corpo seja luminoso, que nossa luz possa iluminar todos aqueles que estiverem sob o raio de nossa ação, “todos aqueles que estão na casa”(Mt 5,15).


Pe. Marie-Eugène de l’Enfant Jèsus, ocd
In Jean de La Croix – Présence de lumière, Éditions du Carmel, 1991, pp.37-47
Tradução livre de Pe. Milton Kenan Jr.
18/04/2001
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